Vou lhe dar, a respeito de Jovem e inocente, o exemplo de um princípio do suspense. Trata-se de fornecer ao público uma informação que os personagens da história ainda não têm; graças a esse princípio, o público sabe mais que os heróis e pode indagar com mais intensidade: "Como a situação vai se resolver?" No final do filme, a jovem, conquistada para a causa do herói, procura o assassino e a única pista que encontra é um velho sossegado, um vagabundo que já viu o assassino e é capaz de reconhecê-lo. O assassino tem um tique nervoso nos olhos.
A moça veste o velho vagabundo com um bom terno e leva-o para um grande hotel onde está havendo um chá dançante. Te muita gente por lá. O vagabundo diz à moça: "É meio ridículo procurar um rosto com um tique nervoso entre todas essas pessoas". Logo depois dessa frase, ponho a câmera no ponto mais alto do salão do hotel, perto do teto, e, suspensa na grua, ela cruza o salão de baile, passa pelos dançarinos, chega ao tablado onde estão os músicos negros, isola um desses músicos, que está na bateria. O travelling continua, dando um close no baterista, que também é negro, até que seus olhos enchem a tela e, nesse momento, se fecham: é o famoso tique nervoso. Tudo isso numa só tomada
É um de seus princípios: do mais afastado para o mais perto, do maior para o menor...
É. Nesse instante, corto e volto ao vagabundo e à moça, ainda sentada no mesmo lugar, no outro extremo da sala. Agora o público sabe e a pergunta que faz é: "Como o vagabundo e a moça vão descobrir esse homem?" Um policial que lá se encontra avista a heroína e a reconhece, pois ela é
a filha de seu chefe. Vai telefonar. Para os músicos, há uma curta pausa durante a qual eles vão fumar num camarim e, ao atravessar o corredor, o baterista vê dois policiais chegando pela entrada de serviço do hotel. Como ele é culpado, esquiva-se discretamente, retorna seu lugar na orquestra e a música recomeça.
Agora o baterista nervoso vê, no outro extremo do salão de dança, os policiais conversando com o vagabundo e a moça. O baterista imagina que os policiais o procuram e acha que foi descoberto; seu nervosismo aumenta e ele começa a tocar mal, e o que faz com o bombo é muito ruim. Toda a orquestra se ressente e perde o ritmo da música por causa desse baterista titubeante. E a coisa piora. A moça, o vagabundo e os policiais se preparam para sair do salão pelo corredor que fica ao lado da orquestra. Na verdade, o baterista não corre mais nenhum risco, mas não sabe, e tudo o que vê são uniformes que avançam para ele. Seus olhos indicam que está cada vez mais nervoso; por causa de suas falhas na bateria, a orquestra é obrigada a parar, os dançarinos também e no final o baterista cai desmaiado no chão, arrastando consigo o bombo, que faz um barulhão, no exato momento em que o nosso grupinho ia cruzar a porta.
O que é toda essa barulheira? O que houve? A moça e o vagabundo se aproximam do baterista inerte. Dissemos no início do filme que a moça se dedicava ao bandeirantismo e era especialista em primeiros socorros. (Inclusive conheceu o jovem na delegacia ao cuidar dele, depois de seu desmaio). Então ela diz: "Vou tentar ajudar esse homem, socorrê-lo", e se aproxima dele; logo vê seus olhos agitados por tremores e, sem perder a calma, continua: "Dê-me uma toalha para enxugar o rosto dele, por favor". É claro que o reconheceu, finge que está cuidando do homem e pede ao vagabundo que se aproxime. Um garçom traz a toalha molhada e ela enxuga o rosto do baterista, que era um falso negro. A moça olha para o vagabundo e este lhe diz: "Sim, é ele mesmo".
Eu vi esse filme há muito tempo na Cinemateca e não me lembrava dessa cena, que foi extremamente apreciada. Todos acharam fantástica, sobretudo o travelling pela sala.
Isso me tomou dois dias, somente para o travelling.
É o mesmo princípio de Interlúdio: a câmera em cima do grande lustre, abarcando todo o hall de entrada e enquadrando, no fim do movimento, a chave da tranca na mão de Ingrid Bergman.
Isso é a linguagem da câmera, que substitui o diálogo. Em Interlúdio. esse grande movimento da máquina diz exatamente: eis que há uma grande recepção nesta casa, mas aqui existe um drama e ninguém desconfia, e esse drama reside num único fato, num pequeno objeto: aquela chave.
.
Hitchcock Truffaut - Entrevistas, edição definitiva
Cia das Letras
2004
A moça veste o velho vagabundo com um bom terno e leva-o para um grande hotel onde está havendo um chá dançante. Te muita gente por lá. O vagabundo diz à moça: "É meio ridículo procurar um rosto com um tique nervoso entre todas essas pessoas". Logo depois dessa frase, ponho a câmera no ponto mais alto do salão do hotel, perto do teto, e, suspensa na grua, ela cruza o salão de baile, passa pelos dançarinos, chega ao tablado onde estão os músicos negros, isola um desses músicos, que está na bateria. O travelling continua, dando um close no baterista, que também é negro, até que seus olhos enchem a tela e, nesse momento, se fecham: é o famoso tique nervoso. Tudo isso numa só tomada
É um de seus princípios: do mais afastado para o mais perto, do maior para o menor...
É. Nesse instante, corto e volto ao vagabundo e à moça, ainda sentada no mesmo lugar, no outro extremo da sala. Agora o público sabe e a pergunta que faz é: "Como o vagabundo e a moça vão descobrir esse homem?" Um policial que lá se encontra avista a heroína e a reconhece, pois ela é
a filha de seu chefe. Vai telefonar. Para os músicos, há uma curta pausa durante a qual eles vão fumar num camarim e, ao atravessar o corredor, o baterista vê dois policiais chegando pela entrada de serviço do hotel. Como ele é culpado, esquiva-se discretamente, retorna seu lugar na orquestra e a música recomeça.
Agora o baterista nervoso vê, no outro extremo do salão de dança, os policiais conversando com o vagabundo e a moça. O baterista imagina que os policiais o procuram e acha que foi descoberto; seu nervosismo aumenta e ele começa a tocar mal, e o que faz com o bombo é muito ruim. Toda a orquestra se ressente e perde o ritmo da música por causa desse baterista titubeante. E a coisa piora. A moça, o vagabundo e os policiais se preparam para sair do salão pelo corredor que fica ao lado da orquestra. Na verdade, o baterista não corre mais nenhum risco, mas não sabe, e tudo o que vê são uniformes que avançam para ele. Seus olhos indicam que está cada vez mais nervoso; por causa de suas falhas na bateria, a orquestra é obrigada a parar, os dançarinos também e no final o baterista cai desmaiado no chão, arrastando consigo o bombo, que faz um barulhão, no exato momento em que o nosso grupinho ia cruzar a porta.
O que é toda essa barulheira? O que houve? A moça e o vagabundo se aproximam do baterista inerte. Dissemos no início do filme que a moça se dedicava ao bandeirantismo e era especialista em primeiros socorros. (Inclusive conheceu o jovem na delegacia ao cuidar dele, depois de seu desmaio). Então ela diz: "Vou tentar ajudar esse homem, socorrê-lo", e se aproxima dele; logo vê seus olhos agitados por tremores e, sem perder a calma, continua: "Dê-me uma toalha para enxugar o rosto dele, por favor". É claro que o reconheceu, finge que está cuidando do homem e pede ao vagabundo que se aproxime. Um garçom traz a toalha molhada e ela enxuga o rosto do baterista, que era um falso negro. A moça olha para o vagabundo e este lhe diz: "Sim, é ele mesmo".
Eu vi esse filme há muito tempo na Cinemateca e não me lembrava dessa cena, que foi extremamente apreciada. Todos acharam fantástica, sobretudo o travelling pela sala.
Isso me tomou dois dias, somente para o travelling.
É o mesmo princípio de Interlúdio: a câmera em cima do grande lustre, abarcando todo o hall de entrada e enquadrando, no fim do movimento, a chave da tranca na mão de Ingrid Bergman.
Isso é a linguagem da câmera, que substitui o diálogo. Em Interlúdio. esse grande movimento da máquina diz exatamente: eis que há uma grande recepção nesta casa, mas aqui existe um drama e ninguém desconfia, e esse drama reside num único fato, num pequeno objeto: aquela chave.
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Hitchcock Truffaut - Entrevistas, edição definitiva
Cia das Letras
2004
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